Por Thiago Domenici
Os isolados Moxihatëtëma são o único grupo em isolamento voluntário confirmado na TI pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Desde 2015, a Bape Serra da Estrutura estava desativada por falta de recursos, segundo o órgão indigenista. Mas em 2020, o Ministério Público Federal (MPF) de Roraima ingressou com uma Ação Civil Pública contra a União, o Estado de Roraima e a Funai para obrigar o estado a agir em decorrência do avanço do garimpo ilegal em meio a pandemia de Covid-19.
No ano passado, ainda sob Bolsonaro, a Funai disse que o sistema de proteção e monitoramento da região vinha sendo operacionalizado pela Bape, que foi reativada no final de 2020. “A iniciativa é fundamental para a proteção dos indígenas isolados que vivem no local”, disse o órgão.
Mas o documento obtido pela reportagem contradiz a Funai, à época comandada pelo delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier. O texto revela que servidores da própria Funai da região pediam socorro à Base de Proteção da Funai reativada em Roraima, que, em vez de servir à proteção indígena, servia ao garimpo. O documento com o pedido de ajuda foi endereçado ao Coordenador de Política de Proteção e Localização de Povos Indígenas Isolados da época e tem como assunto: “Segurança da BAPE Serra da Estrutura, Terra Indígena Yanomami”. O texto relata que o território vinha sofrendo invasões e ameaças “agravadas por preocupante e recente episódio”, ocorrido em 2021.
“[…] um helicóptero (prefixo PR-LNL) pousou próximo à construção [da BAPE Serra da Estrutura]. Como normalmente as aeronaves utilizam o final da pista para retirada de garimpeiros, o Colaborador L.* aproximou-se da aeronave e notou que o piloto portava uma ARMA. O piloto informou que achou ter visto algum colaborador fazer um sinal para parada e, imaginando que pudessem estar precisando de alguma coisa, realizou o pouso. Diante da negativa do colaborador, o mesmo alçou voo. Esclareço que é comum helicópteros sobrevoarem a Bape e utilizarem o final da pista para pouso”, diz trecho do documento.
Diante do episódio, o documento registra que é “inadmissível a continuidade da BAPE Serra da Estrutura sem o devido apoio policial ou militar para reforçar sua segurança e as atividades de proteção territorial no entorno, bem como garantir o bom funcionamento e incolumidade da equipe da Funai”.
O documento informa ainda que ofícios foram encaminhados às instituições de segurança pública e fiscalização ambiental para lidarem com a situação. O próprio registro da Funai informa que a movimentação de aeronaves e garimpeiros nas proximidades da BAPE Serra da Estrutura “tem aumentado de intensidade o que representa risco aos servidores e colaboradores da BAPE”. O documento ainda revela que os invasores têm “circulado armados nas proximidades da BAPE e tentado aliciar funcionários da Funai”. Fontes ouvidas pela reportagem disseram que a ajuda nunca veio.
Helicópteros do garimpo em pista de pouso em base da Funai no território indígena yanomami
As imagens acima, obtidas pela reportagem, são de dois helicópteros que utilizavam a base da Funai sem autorização, supostamente voltados a atividade garimpeira. Um deles, de prefixo PR-HTQ, não está inscrito no Registro Aeronáutico Brasileiro (RAB), segundo a Agência Nacional da Aviação Civil (ANAC). A aeronave também não possui autorização especial de voo da agência, o que significa que voava clandestinamente. Já a aeronave de prefixo PR-LNL, um helicóptero R44 II da marca Robinson Helicopter, citado no documento da Funai, com capacidade para três passageiros, pertence desde 2017 à seguradora Company Seguros S/A (antiga Company Participações S/A), sediada em Goiânia. A reportagem tentou contato com a Company Seguros mas até o momento não obteve resposta.
A crise humanitária que se abateu na Terra Indígena Yanomami, a maior do país, ganhou, enfim, os holofotes do mundo e a atenção nos primeiros dias do novo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A TI é assolada pelo garimpo de ouro — estima-se mais de 20 mil garimpeiros ilegais na região.
No território vivem cerca de 26 mil indígenas dos povos Yanomami e ye’kwana em 321 aldeias. O território foi reconhecido como de ocupação tradicional, demarcado e homologado em 1992.
O quadro de devastação já vinha sendo denunciado por entidades especializadas, órgãos de controle e imprensa há tempos.
No dia 20 de janeiro, o governo federal declarou emergência em saúde pública no território após identificar uma alta de casos de malária, desnutrição infantil e problemas de abastecimento.
Em visita a Roraima, Lula prometeu dar dignidade ao povo Yanomami. A ministra da Saúde, Nísia Trindade, classificou a situação dos indígenas como uma emergência sanitária — pelo menos 1.556 pequenos Yanomami têm hoje algum déficit de peso e as crianças Yanomami morrem 13 vezes mais por causas evitáveis do que média nacional.
A Polícia Federal também instaurou inquérito policial na quarta-feira (25), por determinação do Ministério da Justiça, para apurar os crimes de genocídio, omissão de socorro, crimes ambientais, além de outros crimes conexos em Terras Indígenas Yanomami. A investigação tramita na Superintendência Regional da PF em Roraima e segue sob sigilo.
Segundo a Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF (Ministério Público Federal), a omissão do estado em assegurar a proteção de suas terras levou a grave situação de saúde e segurança alimentar sofrida pelos Yanomami.
Essa omissão do governo de Jair Bolsonaro também colocou em risco os indígenas isolados que habitam o território. “O garimpo tem sido a principal ameaça à reprodução física e cultural dos Moxihatëtëma, cujo território se encontra cercado pela invasão garimpeira”, diz um relatório da Funai revelado pela nossa reportagem em 2021.
Fonte: Agência Pública