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21/11/2022 às 17h59min - Atualizada em 21/11/2022 às 17h59min

Ser mulher jornalista nas Américas: uma luta por justiça, em meio a grandes desafios

A Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão publicou um relatório que mostra a prevalência da violência contra a mulher nas redações da região

Imagem: AGÊNCIA ANADOLU (AGÊNCIA ANADOLU VIA GETTY IMAGES)

El País - 2021 foi um ano significativo para mulheres jornalistas na América Latina, especialmente para as colombianas. Em junho daquele ano, a Corte Constitucional emitiu a sentença T-140-21 a favor de Vanesa Restrepo, que em 2019 denunciou o abuso sexual sofrido por uma colega de trabalho do jornal El Colombiano. Nesta decisão, a Corte “protege os direitos do jornalista de trabalhar em um ambiente livre de violência e discriminação de gênero”. Em março do mesmo ano, Jineth Bedoya expôs perante um tribunal internacional o doloroso testemunho da violência sexual de que foi vítima durante o desenvolvimento de seu trabalho jornalístico. Em 21 de agosto do mesmo ano, duas décadas depois dos acontecimentos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou responsávelao Estado do ataque contra Bedoya.
 

Ambas são decisões jurisprudenciais muito significativas para a proteção de jornalistas com perspectiva de gênero. No entanto, ser mulher e jornalista nas Américas continua sendo uma situação marcada pela violência. A Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão (RELE)—criada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)—documentou os obstáculos e desafios para as mulheres na mídia em seu relatório "Mulheres Jornalistas e Redações: Avanços, Desafios e recomendações para prevenir a violência e combater a discriminação .
 

O documento detalha suas conclusões em três capítulos que abordam a violência e a discriminação contra jornalistas na mídia; o papel da mídia na erradicação da violência e segregação de gênero; e os avanços e desafios para alcançá-la. Em um capítulo final, a RELE faz sugestões para aprofundar a abordagem da violência de gênero nas redações.
 

O teto que parece inalcançável

Segundo o informe, entre os avanços destaca-se que tem crescido o número de mulheres dedicadas ao jornalismo e, por exemplo, na Argentina a maioria dos estudantes em carreiras como jornalismo ou comunicação são mulheres. Apesar disso, são apenas 30% das pessoas que trabalham em empresas jornalísticas. No Brasil, as mulheres são maioria no exercício do ofício, mas são apenas 22% das pessoas que dirigem redações. A mesma dinâmica é registrada na Venezuela, onde o relatório mostra que os homens ocupam a maioria dos cargos hierárquicos na mídia, enquanto as mulheres jornalistas, principalmente as mais jovens, são as responsáveis ​​pela reportagem.
 

As jornalistas consultadas pela RELE asseguram que encontram dificuldades para cobrir a proteção dos direitos das mulheres. Os equatorianos apontaram que, quando tentam enfrentá-lo, enfrentam uma “luta permanente e um trabalho extra de pedagogia para com seus colegas”. Isso reforça outra constatação do relatório: as mulheres jornalistas são classificadas em questões consideradas 'suaves', como questões culturais ou sociais. Na Colômbia, apenas 2 em cada 10 mulheres cobrem todos os assuntos em seus meios de comunicação ou trabalham na política e na justiça. Na Argentina, os homens são os responsáveis ​​pela cobertura de política, economia ou esportes.
 

A Relatoria afirma que os jornalistas enfrentam diferentes tipos de violência, como segregação vertical e horizontal ou diferenças salariais. Tudo isso tem gerado enormes barreiras para que os jornalistas quebrem o chamado teto de vidro, o limite que os preconceitos de gênero criam para que as mulheres subam e assumam cargos de gestão ou poder.
 

Diante desse cenário pouco animador para as mulheres nos meios mais hegemônicos, o documento sustenta que os jornalistas têm optado por liderar e desenvolver seus próprios meios digitais. Várias delas vêm ganhando força e se consolidando como estratégia para enfrentar os obstáculos que enfrentam em um trabalho já precário e também masculinizado.
 

A violência sexual não para

A história de Vanesa Restrepo no El Colombiano se soma à longa lista de denúncias que foram feitas nos últimos anos a vários meios de comunicação colombianos e que continuam crescendo. Em 20 de outubro, foi acrescentada à lista a denúncia de Laura Ubaté, que afirmou ter sido vítima de assédio sexual por parte de uma integrante da Radionica, emissora cultural do sistema público de mídia colombiano.
 

Segundo a RELE, eventos vitimizantes desse tipo prevalecem na mídia e “são freqüentemente naturalizados, o que dá origem a uma cultura organizacional que desestimula a reportagem e incentiva a repetição desses eventos”. O relatório registra que 60% das 160 mulheres comunicadoras entrevistadas para a reportagem "No Es Hora De Callar" , da Fundação para a Liberdade de Imprensa (Flip) relataram já terem sido vítimas de violência de gênero no trabalho e que 78% conhecem situações de violência de gênero contra um colega.
 

O número alarmante é semelhante em outros países. 70% dos jornalistas brasileiros afirmaram ter conhecimento de atos de assédio sexual praticados por colegas ou superiores hierárquicos do sexo masculino. , que relataram assédio sexual por parte de seus chefes, colegas de trabalho ou fontes No México, um estudo realizado em 2019 com 392 jornalistas revelou que 72% deles sofreram assédio sexual no trabalho e 76% indicaram que "em suas empresas, há nenhum tipo de campanha, curso ou ação para sensibilizar os funcionários sobre assédio e assédio sexual”. Exatamente naquele ano, jornalistas mexicanos lançaram uma campanha nas redes sociais onde, sob a hashtag #MetooPeriodistasMexicanos, apresentavam seus depoimentos sobre as experiências de assédio sexual que sofreram em diferentes meios de comunicação.
 

O EL PAÍS conversou com 5 jornalistas de diferentes meios de comunicação nacionais e internacionais com presença na Colômbia e apenas dois mencionaram conhecer algum tipo de via para enfrentar a violência de gênero. Um funcionário do El Colombiano mencionou que esse mecanismo ganhou força após a decisão da Corte Constitucional, que ordenou o ensino a respeito.
 

Para Restrepo, embora a decisão tenha sido apenas um primeiro passo em seu caso, ela mostra que as coisas estão mudando lentamente. “Cada vez que alguém levanta a voz e algo acontece, isso dá aos outros esperança ou coragem suficiente para fazer o mesmo, para falar, para acabar com as injustiças”, diz o jornalista.
 

Para isso, o relatório destaca que a mídia tem um papel fundamental, que vai além de erradicá-los dentro e inclui o incentivo a narrativas que desconstruam estereótipos de gênero e dêem maior representatividade aos comunicadores afrodescendentes, indígenas ou trans. “Os dados indicam que o jornalismo precisa enfrentar tanto as desigualdades de gênero quanto as de origem étnico-racial”, observa.
 

Essas formas de sub-representação e desigualdade são especialmente perceptíveis entre os jornalistas afrodescendentes no Brasil. Apesar de ser um país com grande população afro, “jornalistas negros têm a pior remuneração”, diz o relatório. O problema se repete com os povos originários, como na Colômbia, onde a representação da população indígena é mínima e a abordagem em muitos casos reproduz estereótipos e preconceitos.
 

Passos para prevenir a violência

Para enfrentar as limitações das mulheres nas redações, a RELE faz várias sugestões, como o estabelecimento de políticas internas de mídia, com disposições específicas para combater a violência e a discriminação de gênero. Alerta para a necessidade de terem uma abordagem transversal e interseccional, para que seja possível incluir pessoas de diversas identidades, idosos ou com algum tipo de diversidade funcional.
 

Destaca a importância de ter pessoas definidas a liderar a implementação destas políticas, para facilitar o seu acompanhamento e dispor de relatórios periódicos que permitam medir a sua eficácia. Aconselha a formação simultânea de todos os quadros sobre igualdade de género e insta os meios de comunicação social a dar prioridade às candidatas do sexo feminino na nomeação de cargos de chefia, quando um candidato do sexo masculino e uma candidata do sexo feminino têm as mesmas qualificações.
 

As recomendações surgem das propostas das mesmas mulheres entrevistadas ao longo da construção do relatório. Isso nos lembra que geralmente são os próprios jornalistas que propõem como tornar seus espaços de trabalho mais seguros e igualitários.
 

Após a denúncia, Restrepo passou a ser uma espécie de apoio para os colegas. “Muitos me procuraram para apoiá-los na cobrança ou implementação dos protocolos dentro de suas empresas”, diz ele em conversa com o EL PAÍS. “Embora tenha sido um caminho difícil, tenho visto que o medo está se perdendo e a mídia está entendendo que o que estamos pedindo são direitos básicos, como trabalhar em espaços livres de violência. Isso me parece uma grande conquista”, acrescentou. São transformações alicerçadas na coragem de mulheres que hoje são exemplo para o jornalismo mais jovem.

Fonte: El País


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